crónica de viagens
El Gran Masturbador
Maria Filomena
Depois de 2h de despaciência de 150 km nas auto-estradas supercontroladas da Florida, cheguei a St.
Petersburg, para ver a melhor colecção de Dalí — diz-se, mas ainda estou por convencer.
Parava em cada quadro o tempo de o reconhecer ou de me surpreender. O interesse dos outros visitantes era
tão notável quanto a idade: entre os 70 e os 85, passada a idade da reforma, seguramente. Assim eram também
os funcionários do museu, em perfeito acordo com os usos da terra, onde com frequência somos atendidos por
septuagenários nos hotéis, nas portagens — quase sempre — e noutras tarefas activas.
Entre um grupo de silhuetas lentas, coloridas e atentas ao inglês nasalado do guia que tentava mostrar os
sinais — nem sempre evidentes — das referências católicas em Dali, a destacar-se do flanco direito do grupo, em
frente de uma outra grande tela, uma outra silhueta estacava e observava-me. Pelo rabo do olho ia verificando a persistência
do examinador da minha física pessoa. A persistência, a minuciosidade e os focos privilegiados: decote, rosto, e
outra vez decote. De repente, foi o inevitável encontro de olhares que não se desencontraram. Porque não
quiseram. Eu, pela natural simpatia que o ancião me inspirava, ele ... não sei porquê. Inclinou-se para mim
com murmúrios, que a situação contextualizava em suficiência bastante para eu perceber que me chamava.
O cuidado em não perturbar o silêncio convenceu-me. Aproximei-me e devolvi-lhe o grau de inclinação e,
em sorrisos, as suas delicadezas, raras nos seres e estares masculinos a que estou habituada. Pediu-me em sílabas soletradas
para eu repetir o título do quadro que eu tinha pela frente. Com todo o agrado, repeti: Galacidalacidesoxiribunucleicacid.
Duas vezes, porque ali pelo meio do princípio do primeiro terço do bizarro eneassílabo só confusos
gaguejos me saíam. Ele apressou-se a premiar o meu esforço com uma expressão anacronicamente viril: you
look so beautiful saying this word. Sem perder um milésimo da postura de alguma seriedade forçada para a
situação! Até que, numa fracção de segundo, apanhei-lhe o milimétrico esgar que
denunciava o Don Juan. Subitamente senti-me ridícula, e refiz-me com as escassas reservas de gravidade de que por
vezes em vão me socorro, ajudada pelo desanuviar certo de uma meia-dúzia de passos na direcção oposta.
Percorri toda a exposição e, por vezes, entre um quadro e outro pensava no velho. Coitado. Fazia-me
sorrir. Por piedade.
Ao passar novamente no local da cena, vi uma loura bonita repetir os meus gestos de minutos antes: as mesmas
inclinações, os mesmos olhares, complacente o dela, disfarçadamente sedutor o dele, sem faltar a palavra
fatal Galacidalacidesoxiribunucleicacid, nem o previsível gaguejar, nem o já sabido prémio.
O mesmo acesso de pudor fê-la afastar-se em direcção a mim, que com ela troquei as
respectivas cumplicidades silenciosas enquanto arregalávamos os olhos para o incontornável El Gran Masturbador...
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Publicado originalmente no número 6 do jornal
Eito Fora, de Fevereiro de 1999. |
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Leia já a justa reacção de Monsenhor Agapito Laranjeira!!!
© 1999 Maria Filomena (reproduzido sem autorização)